sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Ele e Ela




Ele gostava dela não por causa de sua flor no cabelo, mas sim pelo jeito que ela a encaixava em seus fios dourados, remexendo-os das raízes às pontas, fazendo-os brilhar o reflexo do sol. Ele gostava de seus olhos pequeninos que, quando riam, suas bochechas os faziam apertadinhos e quase desapareciam na foto. Ele gostava dos pêlos de cada parte do corpo da menina, de pegar a mão dela escondido por debaixo da mesa em um almoço de família, de beijá-la atrás da árvore do quintal de sua avó materna, de levá-la ao cemitério para brincar de ter medo. Ele gostava do colar que ela usava, um meio dourado com pingente de sua inicial. O passatempo preferido do menino era escrever à lápis uns versinhos para a amada, apagar com a borracha e depois escrever tudo de novo, mas de um jeito diferente. Nenhuma escrita estava à altura da menina, ele achava. O cheiro de fim de ano, os presentes enchendo a árvore de natal, o peru ficando pronto no forno, e ele só pensava nela... "Cadê?", perguntava-se. "Cadê ela? Por que demora tanto?". Foi quando Marilda, a galinha de estimação, cacarejou de felicidade lá fora, e aí ele entendeu: Ela chegara! Seu coração pulou. A presença dela causava sempre um furor, de modo que a ardência da paixão dilacerava-o delicada e deliciosamente, com todo amor possível. A porta de madeira foi aberta e lá estava ela, som sua fita no cabelo, seu vestido quadriculado azul-claro, seus olhos apertados e sua boca rosinha... Linda! Linda!




Os anos se passaram. O namoro de portão deu lugar ao noivado, que deu lugar ao casamento, que deu lugar aos filhos, que deu lugar ao cotidiano, à responsabilidade, ao comodismo, ao desânimo, à falta de surpresa, ao já conhecido... Ela não usava mais flor no cabelo. E, se ainda usava, ele não tinha reparado. Os fios dourados não eram mais tão brilhantes, os olhos apertados já eram mais do que conhecidos e o colar com o pingente era, na verdade, um tanto quanto brega. Ele cansou de escrever os versinhos à lápis, achou aquilo perda de tempo demais. Começou a escrever à caneta, de modo que não precisasse mais reescrever tudo, porque aquilo era coisa de criança, e de modo que o tempo foi passando e... "aonde eu tinha guardado o caderninho mesmo?", pensou. Sentiu preguiça de procurar. Deixou pra lá.


Ela pintou o cabelo de preto, começou a usar calça jeans e salto. Esqueceu que existia pôr-do-sol, porque agora usava a memória para se lembrar do horário da mamadeira e da reunião do dia seguinte. Ela teve três filhos. Conheceu a celulite, engordou, emagreceu, engordou, emagreceu, engordou, engordou, fez lipoaspiração.


"Bom dia", "Boa noite"; era tudo o que conversavam.


Ela perdeu o pingente, o colar arrebentou. Ele deu graças à Deus quando isso aconteceu, porque era cafona demais. Os vestidinhos todos foram sumindo, eles acham que doaram há anos atrás pra uma instituição de crianças carentes, mas não se lembram bem. O caderninho? "Acho que a empregada jogou fora", ele respondeu, sem coragem de perguntá-la à que caderninho ela estava se referindo.


Tudo se perdeu. Os sorrisos, os jeitos, os pequenos gestos, o brilho, a leveza, o frescor, o coração acelerado, a respiração ofegante, o nervosismo dos primeiros beijos inseguros... A alma se perdeu. "Tudo bem", ele pensou. "Eram apenas bobagens."

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Entre folhas secas


Perambulo pelo bosque de folhas secas mortas marrons sob um céu cinzento e uma chuva quente
Minhas costas suadas minha cara pintada minha boca melada dá risada do que eu não sei
Minha língua de cortes secos do gosto amargo pardo que a solidão tem me dado
Gruda e cola áspera no céu da boca - que de céu não tem nada-
E roça na dor do incômodo e na falta do salivar de cachorro
Meus peitos pontudos que minha postura faz olhar para o chão são já melancólicos
E a dor precoce da menina mulher me é furacão e me arranca as raízes dos sentidos
Entre pedregulhos pontudos e pés ando como quem cambaleia ao vento
Meu batom vermelho sangue borrado e meus olhos escorridos de vazos dilatados
Formam nas águas da natureza e da dor um elo harmonioso e belo de cor
Meus cabelos longos molhados batem pesados no meu pescoço cor de leite
E o calor abafado do chão me sobe pelas pernas fracas e sem rumo
Me dispo por inteira com meu rosto em direção às nuvens ou à qualquer coisa que possa cair do divino - se é que por ser divino pode-se cair -
E entrego meu corpo minha nudez minha alma e algum resquício de lucidez
À esta luz forte branca que existe lá em cima e que apesar de me cegar por completo
É chamada de paraíso.